HIV e Prevenção



Em todos os meses de dezembros acontece a mesma coisa. Os jornais, blogs, revistas e sites só querem falar de HIV. No dia 1º desse mês, quando se celebra o Dia Mundial de Luta Contra o HIV, somos envolvidos por lacinhos vermelhos e lembrados de que mais algumas dezenas de milhares de pessoas se descobriram positivas no último ano no Brasil.

O que nem sempre nos damos conta é que no ano anterior já tínhamos visto a mesma reportagem, com o mesmo conteúdo nos mesmos canais de comunicação. Tanto as perguntas como as respostas nessas matérias costumam ser as mesmas:

A epidemia de HIV no país já não está controlada?

Não, e nos últimos anos o número de novas infecções está na verdade aumentando.

É só usar a camisinha que se está protegido?

Sim, o uso da camisinha é uma excelente estratégia de prevenção, mas é precisa que ela seja usada para funcionar.

E depois disso, se inicia mais um longo ano em que as pessoas em geral não querem pensar no assunto. Um ano em que mais algumas dezenas de milhares de pessoas vão se infectar com o vírus. Não acredito que o problema aqui seja que as pessoas não aguentam mais pensar sobre HIV, mas sim que não conseguem fazer isso sem se apavorarem. De fato, a humanidade sempre teve dificuldades com isso, por isso acaba fugindo do assunto tabu que é o HIV e sua prevenção.

A infecção por HIV é atualmente uma doença fácil: fácil de ser diagnosticada, pois já é possível com um pouco de saliva e 15 minutos determinar o status, positivo ou negativo, de uma pessoa; fácil de se tratar, pois com poucos comprimidos e alguma regularidade na tomada já é possível manter o vírus dormindo por toda uma vida; e fácil de se prevenir, uma vez que além do preservativo dispomos de várias outras tecnologias eficazes e seguras para bloquear uma nova infecção (ex: Profilaxia pós exposição-PEP, Profilaxia pré exposição-PrEP, e Tratamento Como Prevenção do indivíduo que vive com HIV até que se torne indetectável e não infectante, etc).

O que não é fácil é viver com HIV. É difícil, muito difícil. Ainda é muito difícil.

É difícil enfrentar a discriminação e o julgamento preconceituoso que os outros automaticamente fazem após uma revelação de diagnóstico. É difícil lidar com o medo equivocado que as pessoas têm de se infectarem com seu vírus. É difícil passar a vida se equilibrando entre a ocultação da sua soropositividade e o medo da rejeição por causa dela. É difícil perder o seu emprego somente por ter HIV – mesmo que a atividade laboral não apresente qualquer risco de transmissão viral.

O tratamento antirretroviral é o menor dos problemas. A discriminação é o maior. 

Mesmo com todo o conhecimento científico e avanço da medicina, continuamos ano após ano vendo a epidemia se alastrando no Brasil. Sempre acometendo os mesmos grupos populacionais de maneira desproporcional (gays, travestis, mulheres transexuais, trabalhadores do sexo e usuários de drogas), sendo que a novidade é que nos últimos anos os mais jovens, de 15 a 24 anos, têm apresentado o maior aumento nos novos casos.

Mas afinal, por que isso acontece assim? Por causa da irresponsabilidade dos jovens gays que não usam camisinha?

Não. Essa maneira de enxergar o problema é criminosamente simplista. Veja o resultado da última pesquisa do Ministério que mostrou que, em 2013, mais de 95% dos entrevistados em todo Brasil sabiam perfeitamente como evitar a infecção pelo HIV, mas apenas metade deles referia ter usado o preservativo na última relação sexual de risco. E além disso, os gays usavam mais camisinha que os héteros. De quem é a culpa então da epidemia de HIV continuar crescendo no país em 2016, concentrada em grupos de chave de alta vulnerabilidade?

A culpa é de todo mundo e não de quem vive com HIV.

A culpa é das pessoas que preferem passar o ano todo sem pensar em prevenção, de todos que discriminam o indivíduo soropositivo, dos que julgam alguém que vive com HIV como promíscuo e sujo, daqueles que tem medo de se testarem periodicamente, mesmo vivendo situações de vulnerabilidade,daqueles que disseminam o medo de se infectarem por transar com alguém em terapia antirretroviral e indetectável, dos que, mesmo gostando, não se relacionam com uma pessoa por ela viver com HIV, de todos que não conversam sobre DSTs com suas parcerias sexuais, da mídia que só querem tratar do assunto uma vez por ano, dos homo/transfóbicos que pregam a exclusão de frações da sociedade e de seus direitos civis, dos órgãos governamentais que não assumem que as campanhas de prevenção necessitam de uma abordagem específica e aberta para cada grupo chave de alta vulnerabilidade, do Ministério da Saúde que não tem urgência na incorporação de novas tecnologias de prevenção, do Congresso nacional que pouco se sensibiliza enquanto os novos casos estiverem aumentando somente entre os jovens gays, dos que se esquecem que todos somos vulneráveis à infecção, e não só de quem transa sem camisinha, porque, afinal, quase todo mundo já transou sem camisinha na vida.

A culpa é nossa. 

Já aprendemos a enfrentar o vírus, falta agora enfrentarmos o ser humano.

 

Ricardo Vasconcelos – formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), é infectologista do Hospital das Clínicas e trabalha no projeto PrEP Brasil, que você pode conhecer melhor clicando aqui.